quinta-feira, 8 de março de 2012

O Mal de Aleijadinho: Um Artista com Forma Peculiar

Sob uma nuvem de mistério e heroísmo permanece a identidade de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Filho de um respeitado arquiteto português, Manuel Francisco Lisboa, e uma escrava africana, Isabel, o magnífico escultor, entalhador e arquiteto do Brasil colonial nasceu em Ouro Preto, provavelmente em 1738. Os dados que constroem sua trajetória são alegadamente reconstituídos através de suas obras, documentos e depoimentos de indivíduos que haviam conhecido o artista.

"Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho". Desenhado pelo brilhante médico e artista Dr. Valderílio Feijó Azevedo, professor do departamento de Clínica Médica da UFPR.
Até 1777, com 47 anos, Francisco gozara de perfeita saúde e apreciava as festas regadas a bebidas alcoólicas e danças populares; a partir daí, surgiram os sinais de uma misteriosa doença degenerativa progressiva que lhe deformou o corpo e dificultou seu trabalho, embutindo-lhe grandes sofrimentos e fazendo-lhe valer o apelido “Aleijadinho”.

Retábulo da capela-mor da Igreja de São Francisco em São João del-Rei.
Quanto melhor esculpia as belas formas nas pedras, tanto mais se deformava o corpo singular de Aleijadinho, causando-lhe dores ditas incapacitantes. Apesar da árdua adaptação à degradação de sua saúde, prosseguiu trabalhando incansavelmente, mantendo as habilidades manuais, mesmo perdendo os quirodáctilos, restando-lhe apenas o indicador e o polegar. Perdeu todos os pododáctilos e parte da região calcânea, caminhando de joelhos em direção ao sucesso. Trabalhou durante anos com os cinzéis amarrados nos cotos e, quando mais avançado o mal, carregavam-lhe para os sítios onde gravou magnificamente sua arte. Também a face foi-lhe atingida, emprestando-lhe um aspecto incomum, caracterizado como terrível. Dizem que roupas amplas e folgadas escondiam-lhe a vergonhosa deformidade, grandes chapéus lhe ocultava a face e, para não ser visto, passou a trabalhar dentro de um espaço fechado por toldos, preferencialmente à noite.

Cena do carregamento da cruz, na Via Sacra de Congonhas.
De acordo com relatos, Aleijadinho tinha plena consciência de sua aparência grotesca, desenvolvendo por isso um humor perenemente colérico, desconfiado e revoltado, imaginando que mesmo os elogios que recebia por suas realizações artísticas eram dissimulados escárnios. Reza a lenda que, depois de ser chamado de "homem feio" por José Romão, ajudante-de-ordens do governador Bernardo Lorena, o artista se vingou esculpindo uma estátua de São Jorge com a cara "bestificada" de seu desafeto.

Nossa Senhora das Dores. Museu de Arte Sacra de São Paulo.
Sua condição debilitou em 1812, quando passou a depender demasiadamente das pessoas que o assistiam. De acordo com o depoimento da nora do artista, nos seus últimos dois anos, quando acamado e incapacitado de trabalhar, parte de seu corpo ficou coberto de chagas, e ele implorava constantemente que Cristo pousasse Seus santos pés sobre seu miserável corpo, dando-lhe boa morte e livrando-o dessa vida sofrida. A esta altura encontrava-se praticamente cego e com redução global das capacidades motoras. Por um breve período voltou para sua antiga moradia, mas logo teve de acomodar-se na casa de sua nora, que de acordo com o historiador Rodrigo Ferreira Bretas se encarregou dos cuidados de que necessitava até que ele veio a falecer, em 18 de novembro de 1814. Foi sepultado na Matriz de Antônio Dias, em uma tumba junto ao altar de Nossa Senhora da Boa Morte.

Igreja onde Francisco Lisboa está sepultado. Nossa Senhora da Conceição, construída entre os anos de 1727 e 1746, com projeto e execução de Manuel Francisco Lisboa, o pai do Aleijadinho.
Ao longo dos séculos, diversos diagnósticos tem sido propostos por médicos e historiadores para explicar sua doença, todos conjeturais, incluindo entre outras etiologias a hanseníase (improvável, visto que o artista não foi excluído do convívio social, como ocorria com todos os leprosos),sífilis, escorbuto, traumas físicos decorrentes de uma queda, artrite reumatóide e poliomielite.

O reumatologista Dr. Archiles Cruz Filho argumentou que Aleijadinho possa, na verdade, ter sido portador de esclerodermia, visto que a maioria das manifestações da doença do escultor são compatíveis com esclerose sistêmica, principalmente as alterações de membros.

As mais recentes pesquisas, realizadas por uma equipe de cientistas liderada pelo dermatologista e hansenologista Geraldo Barroso de Carval, professor da Faculdade de Medicina de Barbacena (MG) e autor do recém-lançado Doenças e Mistérios do Mestre Aleijadinho, apontam em favor da porfiria.

Descrito pela primeira vez em 1874, pelo médico alemão J. H. Schultz, o termo “porfirias” descreve um grupo de doenças com manifestações clínicas diversas que compartilham um quadro comum: a deficiência na síntese do anel porfírico, que irá fazer parte do grupo heme, que por sua vez é parte integrante dos citocromos e da hemoglobina. Pacientes com porfiria possuem, dentre outras manifestações, alteração da função das hemácias. A Porfiria Cutânea Tardia (PCT), atribuída como provável enfermidade de Aleijadinho, é uma das mais importantes formas deste grupo de doenças. A PCT caracteriza-se por um déficit de uroporfirinogênio descarboxilase, enzima encarregada da mediação de vários passos na síntese do grupo heme.

Numa exumação feita em 1971, o médico e bioquímico Paulo da Silva Lacaz, então professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observou que os ossos do artista exibiam uma coloração castanho-avermelhada, típica dos portadores de porfiria. Lacaz morreu antes de concluir suas pesquisas. Inspirado nesse trabalho pioneiro Barroso procedeu uma nova exumação dos despojos de Aleijadinho. Amostras colhidas pela equipe foram encaminhadas, através do departamento de Bioquímica da Universidade de Juiz de Fora, à Embrapa Solos, no Rio de Janeiro, que dispunha da tecnologia necessária para a investigação. O resultado da análise química inorgânica dos ossos detectou níveis espantosos de ferro dentro da vértebra do escultor. "Os estudos ainda não terminaram, mas com base nestes resultados podemos afirmar que não há outra razão para a pigmentação avermelhada dos ossos de Aleijadinho, senão decorrência da porfiria", frisou Barroso.

Dentre as manifestações clínicas da PCT, destacam-se fragilidade cutânea, fotossensibilidade (que justificaria o fato do artista trabalhar à noite ou protegido por um toldo), bolhas hemorrágicas ou serosas nas regiões expostas da pele (compatível com as “chagas” que cobriam o corpo de Francisco segundo sua nora), hirsutismo (o historiador Bretas relatou que Aleijadinho tinha pelo facial “cerrado e basto”), ou até mesmo alterações compatíveis com Lúpus Eritematoso Sistêmico ou Esclerodermia. Em casos extremos, a porfiria pode levar à perda das falanges. Os sinais da doença são precipitados dentre outros fatores por ingestão alcoólica (sabidamente o artista possuía tal hábito), cujo metabolismo hepático, em geral deficiente, propicia o acúmulo de ferro hepático.
Em qualquer peça sua que serve de realce aos edifícios mais elegantes, admira-se a invenção, o equilíbrio natural, ou composto, a justeza das dimensões, a energia dos usos e costumes e a escolha e disposição dos acessórios com os grupos verossímeis que inspira a bela natureza. Tanta preciosidade se acha depositada em um corpo enfermo que precisa ser conduzido a qualquer parte e atarem-se-lhe os ferros para poder obrar. Joaquim José da Silva, sobre Aleijadinho. (1790)
Dos muitos artistas que marcaram a cultura brasileira, Aleijadinho é a figura de maior expoente. Certamente, maiores que as riquezas extraídas das Minas Gerais, são os tesouros talhados pela genialidade e grandiosidade deste que tornou-se eterno através de suas estéticas obras.


REFERÊNCIAS:
1. V.F. Azevedo. "La malattia dell’Aleijadinho potrebbe essere stata una sclerodermia?". Reumatismo, 2008; 60(3):230-234.
2. Fernando Jorge. "O Aleijadinho". Bertrand Brasil.1949.
3.Bretas RJF. Antônio Francisco Lisboa - O Aleijadinho. Col. Reconquista do Brasil, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, Brasil, 2002.
4.Lopes, CF. "As dores de Aleijadinho". Revista Galileu. Ed. Globo.